quarta-feira, 21 de maio de 2008

O Precoce Falecimento de Oswaldo Luís, Presidente da ONG Amigos do Transplante.

ATÉ QUANDO O EVITÁVEL PERMANECERÁ INEVITÁVEL

Nosso pesar pelo precoce falecimento do inteligente e bravo companheiro Oswaldo Luis Pereira de Sousa, presidente do Grupo Amigos do Transplante do Rio de Janeiro. Nossa solidariedade especial à sua família e o testemunho de que pessoas como o Oswaldo provocam uma grande lacuna pela sua ausência; contudo, por haverem vivido com intensa paixão e doação à vida, fornecem um material afetivo e humano aos que conviveram consigo que se perpetua em eterno movimento.
Há pouco o que se dizer da morte, da separação, a não ser que doem muito em quem permanece. Não canso de repetir nestas circunstâncias um frevo canção, da minha terra Recife. O transcrevo, grifando a primeira estrofe:

FREVO DA SAUDADE
Nelson Ferreira e Aldemar Paiva

Quem tem saudade
Não está sozinho,
Tem o carinho
Da recordação...

Por isso quando estou
Mais isolado
Estou bem acompanhado
Com você no coração...

Um sorriso,
Uma frase, uma flor,
Tudo é você na imaginação...

Serpentina ou confete
carnaval de amor,
Tudo é você no coração...

Você existe como um anjo de bondade
E me acompanha
Neste Frevo de Saudade!!!

Este exercício de conquistas e perdas, que é a vida de todos nós, nos impõe perdas necessárias e outras que nos são desnecessárias e dependentes do nosso estágio social de desenvolvimento.
Sem dúvida, enquanto não for o homem o centro e objeto do progresso e do desenvolvimento, seremos servos e vítimas dos interesses do capital. Enquanto o humanismo e a ética não se restabelecerem, inclusive pelas nossas ações, enfrentaremos perdas e danos desnecessários e irreparáveis.
Quando ocorre o que é natural e inevitável, estamos diante da vocação própria de todo o universo e resta-nos a interioridade e meditação de uma música, de uma fonte, de uma oração, de um poema, mesmo que regados das nossas frágeis lágrimas.
Quando advém o que não deveria suceder, por ser evitável, por ser injusto, às vezes não a si, mas a uma comunidade de pessoas humanas, doe muito, muito, e demais, e, resta continuar.
Cá entre nós, vivenciamos perdas por hepatites cuja freqüência nos estarrece.
Prosseguir como se tudo fosse um desígnio inevitável, é não lutar, é prosseguir pela metade. Fazer cada qual a sua parcela, compreendendo a necessidade de se inteirar do universo que o cerca, é crer que somos agentes de uma sociedade e um mundo a ser aperfeiçoado.
Unir-se para transformar o status quo, o velho em novo, o que teima em ser imutável, o que repetidamente é tido como sem solução; é exercer a cidadania de forma competente e legar aos que virão, dias melhores. Mesmo aparentemente parecendo que nos debatemos contra moinhos de vento.
Nossos egos e sentimentos de vaidade se esvaem, quando, o viver que nos é tão caro, torna-se ameaçado. Não se mede nem se estima perdas de vidas humanas; porém com certeza a ausência de alguém, repercute sobremaneira nos entes queridos representados principalmente pela família.
As hepatites B e C, diariamente ceifam muitas vidas de pessoas anônimas, sem que tenham tido sequer a chance de detectar a doença, se submeter a algum tratamento ou ao transplante hepático. Ao atingir estágios avançados de gravidade, morre-se à espera de um órgão, não por falta de solidariedade da população que o doa, e sim, por falta de mecanismos institucionais promotores da necessária difusão da doação, de um contingenciamento eficaz de equipes de captação e um gerenciamento institucional aperfeiçoado dos grupos de transplante hepático e seus insumos.
Todos sabem que sou médico hepatologista, no exercício de minha profissão, dedicando parte do meu tempo a uma ONG de portadores de hepatites e transplantes de fígado. Eventualmente estou presidente do Núcleo Confiantes no Futuro, em João Pessoa, que, junto com portadores e um transplantado, ajudamos a criar, até ter sido registrado como ONG pelo seu primeiro presidente, o engenheiro Frederico Pitanga, à época em tratamento.
Não existem razões de natureza profissional, científica ou pecuniária, para que optássemos em desenvolver este trabalho voluntário. Éramos e somos um grupo de pessoas dispostas a enfrentar as dificuldades, respaldadas apenas na união pelo bem comum. Não tenho dúvidas que este universo de troca e apoio mútuo entre médicos, ou melhor, dito, cuidadores e pacientes, seja especialmente rico, eficaz e construtivo para ambas as partes. Outras organizações existem cujo elemento aglutinador ou impulsionador, por óbvias razões é o médico. Assim, este grupo existe desde o ano de 2002, sendo atualmente declarado de utilidade pública municipal.
Poucos recursos, na sua maioria, emanados dos que compõem a própria ONG; outros decorrentes de doações sob a forma de impressos com conteúdo de divulgação ou destinados a ações específicas, como é o caso dos kits de testagem rápida para o vírus C e da biópsia hepática, para os que não conseguem realizá-la através do Sistema Único de Saúde. Não somos subsidiados por qualquer organismo público ou privado; embora saibamos e constatemos muitas parcerias e desenvolvimento de projetos éticos em diversas organizações do terceiro setor.
Muitos projetos elaborados, discutidos, defendidos junto a gestores públicos e instituições como à Secretaria Estadual de Saúde e ao Hospital Universitário Lauro Wanderley, por anos a fio, sem que se consiga solucionar o problema da implantação de um centro de referência para tratamento multidisciplinar das hepatites nas cidades de João Pessoa e Campina Grande, que possui o Hospital Universitário Alcides Carneiro.
Apesar de conseguirmos a duras penas a constituição de um Comitê Estadual de Hepatites, composto por profissionais representativos, tanto da comunidade científica quanto da sociedade civil, as decisões ali tomadas tornam-se letras mortas não viabilizadas. Prosseguimos com problemas com medicamentos, exames de biologia molecular, biópsia hepática; além da já enfatizada ausência de um protocolo estadual de tratamento e controle para as hepatites e ações de testagem, divulgação e notificação.
Nunca nos negamos à construção de parcerias, nos limites dos nossos objetivos. Estes são especialmente, o controle social, a divulgação e conscientização da doença, a construção de propostas que conduzam os gestores e as instituições a implantarem mecanismos de prevenção diagnóstico e tratamento sérios e eficazes. Desenvolvemos ações de apoio mútuo, para minorar o caminho dos que percorrem sozinhos uma doença crônica e progressiva na maioria das vezes.
Parcerias e apoio têm sido construídos com a secretaria municipal de saúde, em ações de caráter de divulgação e campanhas públicas em João Pessoa.
A integração com o movimento nacional de hepatites passou a ser objeto de preocupação, por acreditarmos, como muitos, que, apenas um movimento nacional coeso e forte, unido a todos os que possuem o mesmo desiderato, incluindo os grupos dedicados ao transplante hepático, (como modalidade de tratamento das complicações causadas por estes vírus), será capaz de ter avanços substanciais nesta luta.
Muitas vitórias, muitas dificuldades, muitos impasses locais e nacionais, várias perdas de companheiros portadores.
Naturezas variadas de óbitos. Dentre estas notamos o agravamento dos indivíduos contaminados por falta de divulgação da doença, falta de busca por testagem, número reduzido de tratamentos nas fases onde estes poderiam promover a cura, reduzido número de casos em tratamento. Tudo isto revelando a ausência de diagnósticos, manutenção dos reservatórios humanos do vírus e das práticas de risco. No que diz respeito a hepatite B, a baixa difusão e conscientização da população em campanhas para uma cobertura vacinal mais extensa é outro fato inconteste.
Sabemos que o tratamento cirúrgico, seja pela remoção de segmento hepático acometido por câncer, quer por procedimentos pouco invasivos associados à imagem, destinados à destruição de nódulos tumorais, ou através do transplante hepático ou do retransplante, é apenas uma modalidade de tratar complicações de doenças denominadas hepatites B e C.
O portador transplantado prossegue a necessitar de tratamento dirigido à erradicação do vírus, (quando indicado) e ao combate à rejeição e infecções oportunísticas. A imunossupressão encurta em muitos casos o tempo em que o novo fígado tornar-se-á mais uma vez um fígado cirrótico.
Não faz muito tempo e o companheiro Oswaldo Luis denunciava a situação calamitosa dos transplantes no estado do Rio de Janeiro, onde um órgão captado fora jogado ao lixo por razões burocráticas, enquanto se padece e morre por carência de órgãos.
Não é infreqüente a falta de medicamentos, ditos excepcionais, quer para o tratamento das hepatites, quer como coadjuvantes deste, ou imunossupressores que quando suspensos atentam contra a vida do transplantado. Em sua própria defesa, os pacientes tornam-se obrigados a estocar medicação antes dos tratamentos, depositarem sobras nos grupos de apoio, compartilhar medicações entre parceiros de estados muitas vezes longínquos.
Nós médicos por outro lado, muitas vezes sem a devida formação ou carentes de programas de educação continuada e outros fóruns que habilitem ao menos a rastrear doenças emergentes e endêmicas, contribuímos para que as hepatites B e C não sejam numericamente mais detectadas. A onipotência e a vaidade, no trato aos pacientes, especialmente aos mais carentes, quantas vezes tornou o doente precocemente diagnosticado, em um indivíduo com uma doença avançada, pelo simples fato de não o encaminharmos ao especialista e seguirmos minimizando as conseqüências destas doenças.
Ninguém procura o que não conhece!
Procurar os casos de hepatites B e C requer conhecimento. Este tem que ser alertado e promovido por todas as sociedades de especialidades médicas, pelo Ministério da Saúde e Secretarias de Saúde. As unidades básicas são a porta de entrada do sistema e carecem de capacitação dos seus profissionais.
Mas não se evolui criando normas e leis que não sejam acompanhadas, aferidas periódica e continuamente em sua execução e em seus resultados.
Carecemos por em nossas mentes que o preço da liberdade continuará sendo a eterna vigilância e união. A isto toda a sociedade civil organizada em torno das hepatites tem de manter-se atenta.
À véspera do dia mundial das hepatites, a notícia de que foi ceifado do movimento um companheiro diretor de uma organização da sociedade civil. Baseado na perda de quem tive o privilégio de conhecer durante o último ENONG de Hepatites, escrevo este desabafo que me serve de reflexão. Aguardo que se preste a outros.


Waldir Pedrosa Amorim

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