terça-feira, 30 de outubro de 2007

Saiba mais detalhes do novo Consenso da SBI para Manuseio e Terapia da Hepatite C


O infectologista Evaldo Stanislau Affonso de Araújo, membro do Comitê Científico de Hepatites Virais da SBI, coordenou o trabalho de um grupo de 25 renomados especialistas brasileiros para a elaboração do recém-lançado Consenso da SBI para o Manuseio e Terapia da Hepatite C. Ela já havia organizado e foi autor de dois outros consensos sobre hepatite C (de 2002 e 2004 da Sociedade Paulista de Infectologia) e também coordenou os trabalhos para a elaboração do Consenso da SBI sobre Hepatite B, lançado no ano passado. Com mestrado e doutorado sobre o tema Hepatite C pela FMUSP, Evaldo é assistente-doutor no ambulatório e laboratório de hepatites da Divisão de Moléstias Infecciosas e Parasitárias (DMIP) do HC-FMUSP. Pesquisador na área, é autor de vários artigos científicos e capítulos de livro sobre o tema hepatite C. Como voluntário, foi fundador e atua como diretor técnico da ONG Grupo Esperança de apoio aos familiares e portadores de hepatite C, em Santos/SP. Criador da área temática de Hepatites Virais da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, também presta consultoria sobre hepatites virais nas áreas pública e privada. Nesta entrevista ao Portal da SBI, comenta detalhes da elaboração ao novo consenso, destaca os pontos mais importantes do novo documento, fala sobre o novo protocolo do Ministério da Saúde para o tratamento da hepatite C, das contribuições do novo consenso que poderiam ser incorporadas pelo serviço públicos, entre outros temas.

Portal SBI: Qual foi a metodologia utilizada para a consecução desse trabalho?
Dr. Evaldo Stanislau Affonso de Araújo:
A partir do Comitê Científico de Hepatites Virais, nomeou-se uma coordenação que propôs os tópicos de discussão. Cada tópico teve um sub-coordenador que elencou os convidados que, por usa vez, revisaram os temas apresentados no proceedings e que embasaram a discussão posterior. O Grupo de Consenso se reuniu durante um final de semana em um hotel e, após a discussão e aprovação de um roteiro, os temas foram debatidos um a um até a obtenção de uma posição consensual ou majoritária do grupo. Ao fim, houve a redação dos tópicos que se transformaram no consenso propriamente dito, lidos e aprovados ao término da reunião. Alguns integrantes não participaram da etapa de discussão, restringindo-se às revisões. Em particular, tivemos uma contribuição internacional de muito peso. Tal não se fez porque não tenhamos a capacidade para o debate, mas sim em virtude da excepcional visão e atualização do professor Jean-Michel Pawlotsky. Em minha opinião, ele é na atualidade um dos mais importantes líderes no campo científico das hepatites virais. Gostaria de destacar, de forma muito clara e transparente, que os laboratórios Roche e Schering-Plough contribuíram financeiramente para viabilizar nossa reunião e os custos de versão e publicação do proceedings. Porém, em nada interfeririam em relação ao conteúdo de nossos trabalhos.

Portal SBI: Quais são as contribuições que este consenso traz para os profissionais das especialidades Infectologia e Hepatologia?
Dr. Evaldo: Os consensos realizados pelo núcleo dos infectologistas envolvidos nesse trabalho se iniciaram em 2002, na Sociedade Paulista de Infectologia, com o primeiro consenso sobre hepatite C. Posteriormente, em 2004, esse documento foi atualizado e, com a atual estrutura de Comitês Científicos da SBI, trouxemos essa experiência para a Sociedade. Daí realizamos o I Consenso da SBI sobre Hepatite B, em 2006, e agora o primeiro sobre hepatite C. Certamente essa experiência acumulada se refletiu em um consenso mais objetivo, certeiro e prático. Tivemos como meta recuperar os dados defasados e nos manter atualizados com as tendências futuras. Com esse espírito, além de uma prática clínica cada vez mais complexa ante os desafios impostos e a falta de uma perspectiva terapêutica realmente inovadora para os próximos anos, optamos, em consenso, pela ousadia e por ter como meta o apoio aos colegas, materializado nas recomendações de especialistas, e a vida, com qualidade, de nossos pacientes.

Portal SBI: Quais os principais avanços e novidades que este consenso propõe no manuseio e tratamento da hepatite C?
Dr. Evaldo: Procuramos nos embasar no melhor nível de evidências científicas, entretanto, diante de situações clínicas críticas e da falta de perspectiva de novas terapias (novas drogas) que sejam usadas sem o interferon, extremamente complexo em seu manuseio, acreditamos que a opinião dos especialistas e dados recentemente apresentados na literatura nos permitiram alterar alguns paradigmas, aliás, o que alguns colegas até faziam de forma individual. Dessa forma, incorporamos integralmente os conceitos de individualização da dose e duração da terapia (curta, longa ou padrão) baseando-nos no tipo de resposta precoce e na cinética viral. Também recomendamos a terapia apenas com interferon peguilado, o que já tem sido feito no mundo inteiro, reconhecendo a comodidade posológica como fator relevante e que, mesmo genótipos tidos como favoráveis (genótipo 3), em determinadas situações (alta carga viral, pacientes cirróticos), adquirem características que o tornam tão complexos como o genótipo 1. Também delimitamos as situações onde o retratamento deve ser considerado e, para situações particulares, antecipamos a indicação da terapia. Um conceito que trabalhamos à exaustão foi o de se manter doses a todo custo, reduzindo a possibilidade de falha da terapia. Abordamos aspectos epidemiológicos, sociais e práticos, além da co-infecção, não só com HIV, mas também com outros vírus. Por fim, assumimos a necessidade de, em casos muito bem selecionados, manter a terapia com interferon peguilado, objetivando modular a progressão histológica da doença. Isso foi, realmente, muito ousado, e necessário!

Portal SBI: Recentemente o PNHV lançou novo protocolo com diretrizes para o tratamento da hepatite C. Em que difere as duas abordagens e no que convergem?
Dr. Evaldo: Seria injusto compararmos a portaria ministerial com nosso consenso. O Ministério possui uma responsabilidade de gestão e uma visão macro onde procura equilibrar todos os "quereres" com as reais possibilidades em um rol enorme de patologias e situações sociais complexas. Nós temos apenas o compromisso científico. E isso faz toda a diferença. Além desse aspecto, a própria portaria já traz em seu início um indicativo de que foi realizada baseada em dados de um ano e meio antes de sua publicação. Nós utilizamos dados muito recentes. Existem, é fato, alguns pontos de convergência; porém, são documentos distintos e com objetivos também diferentes. Um cria uma regra de gestão, outro, o Estado-da-Arte da assistência. Por fim, cumpre destacar que uma questão que colocamos em debate, e que não consta da versão do consenso, são aspectos de farmacoeconomia. A maioria do grupo acredita que esses conceitos ainda não se aplicariam nas questões de Saúde, freqüentemente de vida ou morte. Isso exemplifica bem as dificuldades de conciliar a visão coletiva do gestor da visão individual do médico e do paciente.

Portal SBI: Na sua opinião, que propostas do consenso da SBI poderiam ser incorporadas às novas diretrizes do PNHV?
Dr. Evaldo: Veja, a questão anterior expõe muitas das dificuldades. Entretanto, uma gestão mais eficaz, e a gestão não depende só do Ministério mas, essencialmente, dos serviços de saúde nos estados e municípios, permitiria uma melhor utilização da biologia molecular, por exemplo. O custo de uma única ampola de interferon peguilado paga, com sobra, a incorporação do PCR qualitativo na semana 4 e do quantitativo para os genótipos não-1, o que pode refletir em manuseio diferenciado. Se considerarmos que aproximadamente 30% dos pacientes com genótipo 1 poderiam ter sua terapia otimizada, se considerarmos que pacientes com terapia estendida poderiam evitar o retratamento futuro, veremos que temos espaço para incorporar algumas de nossas sugestões e ainda não desperdiçar recursos. Por outro lado, é inadmissível que tenhamos a disponibilização do caro interferon peguilado sem que as ferramentas de controle estejam disponíveis, como é o caso do PCR quanti e, mesmo, do qualitativo. Além disso, inexiste uma ferramenta de controle central sobre quem são os pacientes sob tratamento e quais os resultados parciais e finais de suas terapias. Em minha opinião isso é muito sério e estamos potencialmente desperdiçando recursos valiosos. Pergunto, o tratamento atual é ruim e essa é a resposta? Sem dúvida, para muitos pacientes a terapia não é a ideal, mas o pior é a utilização subótima dos mesmos, pois faltam exames e medicamentos de suporte, faltam ferramentas de controle de gestão e profissionais adequadamente treinados. Realizamos um levantamento em "vida real" dos resultados da terapia com interferon peguilado no HC-FMUSP, dados apresentados em Glasgow recentemente, e confesso que ficamos muito preocupados com o que encontramos. Se for um espelho do Brasil, temos que, conjuntamente, refletir para onde devemos nos encaminhar.

Portal SBI: O infectologista que atua em serviço público (SUS) tem condições de seguir as recomendações deste consenso para tratar seus pacientes? Comente a que alternativas ele pode recorrer para seguir o que o consenso da SBI preconiza.
Dr. Evaldo: Nos serviços públicos temos regras e diretrizes que cerceiam o acesso às nossas diretrizes. Entretanto, na clínica privada são perfeitamente aplicáveis. Se eu fosse escolher, no SUS, apenas uma das recomendações eu sugeriria a incorporação do PCR qualitativo na semana 4, identificando os respondedores rápidos. Isso tem implicações na assistência, mas, principalmente, podemos trabalhar a motivação e adesão aos que a obtém. E isso vale também aos co-infectados com HIV. Ressalto, ainda em relação à portaria, que a menção que lá se encontra sobre a pesquisa do HCV na semana 4 está equivocada uma vez que direcionada ao valor preditivo negativo e que a terapia não deveria ser interrompida. Na verdade, a semana 4 tem valor preditivo positivo! Também acredito que a dose plena da ribavirina (15mg/kg/dia) pode ser facilmente implementada e isso é significativo na redução da taxa de recidivas.

Portal SBI: Na sessão em Curitiba, houve o elogio de um representante da sociedade civil com relação ao trabalho. Como você avalia que este segmento pode colaborar para a incorporação das novidades propostas no SUS?
Dr. Evaldo: Verdade seja dita, as ONGs têm um papel essencial, e está previsto no SUS a sua participação no controle social. Encaro com muita tranqüilidade a manifestação favorável, como também o seria se fosse o contrário. Na questão das hepatites, as ONGs já desempenharam ações essenciais como a alteração dos exames de biologia molecular para o plano estratégico extra-teto e a criação dos encontros nacionais. Fomentam a participação não só dos profissionais, mas também de lideranças legislativas redundando em leis municipais e federais que beneficiam a todos. Portanto, a exemplo das ONGs da Aids, aquelas que militam pela causa das hepatites virais e do transplante de fígado são atores indispensáveis para o sucesso e plena implementação de políticas assistenciais e preventivas conseqüentes. Tenho orgulho de ser fundador e dirigente de uma ONG das mais antigas e respeitadas. Acho que vários de nós, médicos, mantemos uma saudável interface com esse segmento atuando como parceiros e conselheiros técnicos.

Portal SBI: O Estado-da-Arte nesta área avança com rapidez? Como os infectologistas podem manter-se atualizados?
Dr. Evaldo: Apesar de avançar, estamos em uma "entre-safra" de novidades. Os novos medicamentos em desenvolvimento e as técnicas para estudar o HCV são complexos e têm se mostrado mais difíceis do que o desejado. Assim, acredito que no momento a grande "novidade" é usar muito bem as armas de que dispomos, e essa é a mensagem do consenso. Creio que o Portal da SBI e o Comitê de Hepatites Virais têm cumprido o papel de atualizar a todos os colegas. Essa seria a minha dica: procurem-nos.

Portal SBI: O Comitê HV pensa em fazer um “guia rápido”, mais sintético e direto, de orientações para a prática clínica?
Dr. Evaldo: O consenso já está bastante fácil e direto. Perguntas/tópicos e respostas/considerações. Creio que a forma é essa. Evidentemente que poderemos rever e acatar as sempre bem-vindas sugestões dos leitores. Por fim, destaco que publicamos o consenso vertido ao inglês e em um número regular do BJID, disponibilizando-o ao mundo todo, e que o proceedings está em fase de indexação, também em inglês. A SBI, dessa forma, contribui à discussão da hepatite C da maneira mais plural e ampla possível.

Fonte: http://www.infectologia.org.br/default.asp?site_Acao=mostraPagina&paginaId=134&mNoti_Acao=mostraNoticia&noticiaId=887

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